sábado, 27 de fevereiro de 2010

O Orador.

O hábito faz o monge. No caso, fizeram-as velhas, feias, arremesaram os bons tempos de suas vidas pela janela abaixo, gastaram tudo do pouco que haviam nascido e agora não possuiam nem a memória de um beijo quente, de uma carícia, de um homem. Solteironas, isso que eram, além de caçadoras de preocupações alheias, mas lá onde mal viviam tinham outro nome: oradoras.

Todo mundo conheçe um grupo desses e todo bairro tem um, mesmo nos mais excomungados, ou sobretudo nesses. Passam a tarde a bocejar o tédio em coral, conversam sobre os últimos casos preocupantíssimos da paróquia e quando esses faltam, as grandes catástrofes mundiais entram em cena, isso tudo com os deliciosos quitudes que só a experiência de uma mulher morna e nunca amada é capaz de cozinhar. Essa estória é delas... ou quase. Fiquemos ao quase por agora.

- Meninas, meninas... Prestem atenção.
Chamavam-se por meninas essas senhoras de sessenta anos para mais, pois mesmo as mais jovens, as de quarenta, já possuiam a catadura de tias-avós. Era a chefe que falava. Chefe, aquela que manda, as outras só seguiam, pois todo grupo de reza tem esse tipo, aquela que se supõe mais santa, mais casta, mais pia, e contráriamente e ainda assim, a mais humilde. Discursava:
- Meninas... O assunto é gravíssimo. Os Pereiras da rua de cima faleceram.
Todas com muito decoro se portam lúgubres, com cera, o contrário de sinceras. Sem cera. Essas com muita cera em suas máscaras, ninguém se importava com a notícia e muito bem passariam sem ela, continuariam com suas caras saltitantes, sorrisos cheios de bolo e conversa pequena.
- OH! Meu Deus! Que Ele os tenha.
Outra lança:
- Temos que encomendar-lhes a alma a Ele...
- Então. O funeral será amanha. Mas hoje vamos nos propor a velar o corpo em terço. Retruca a chefe das oradoras.
Deliberado os pormenores todas se encaminham mais a noite a casa dos recém mortos. Corpos encaixãotados em cima da mesa. Sala transformada em capela. Círios, velas, padre. O Padre. Aquele a quem elas tudo faziam, fazendo para agradá-lo. Falam aos filhos do casal. Pesames, carpem os mortos, tudo do combinado da pauta, ok. Começam a reza, ou melhor aquela da liderança:
- Deus todo poderoso, Senhor dos céus, Pai de todos, perceba o sofrimento dessas almas que agora suplicam em pesar. Traga benção a todos desta sala...
E o coro:
- Sim, Deus!
Punham tanta força na palavra 'deus', talvez por acharem ser sinal de medir-lhes a devoção, que todas as frases eram exclamativas. Deus!
- Deus, Grande, Misericordioso, tende piedade de nós e acolha essas almas que partiram.
- Sim, Deus! Acolha. Todas gritam em fervor.

E assim continuam. O funeral de manso tédio viu crescer a euforia dos palanques politícos. Familiares dos defuntos, embarassados, mas nada faziam ou falavam. Eram dois os filhos deixados, Paulinha, menina franzina de 12, e Jõao Gustavo, já de 18, um homem parrudo de maus hábitos. A pobre crinça e o homem raivoso.

Ela sentia-se abondonada, de choro preso tinha a mente embotada desde o acidente de carro que levou seus pais, ele fulo da vida, tinha acabado de acabar a escola, largado na penura, nem um tostão os pais lhe deixaram. Antevendo a miséria, ou pior, o trabalho, enxovalhava a todos, os país mortos, a irmã pequena e seu peso, o padre idiota e principalmente aquelas senhoras que nunca nem tinha visto na vida e que tinha entrado e agora gritavam a deus. Deus, aquele idiota! Se passa aqui pulo na garganta dele. Mas se bem que se me arranjasse um modo de só farrear, bem que pagava umas 10.000 aves-maria. Não pedia a ressureição dos pais, só pedia um jeito de continuar na vida boa, ser malandro para sempre.

Ele tinha problemas com Deus, acreditou nele e no papai noel na infância, tomou um susto descobrindo a farsa do bom velhinho e se estrepou nas promesas que fazia ao Senhor. Queria um pirulito, prometia 5 aves-marias. Ganhava, não pagava a dívida. Queria não reprovar de ano na escola , prometia 100. Passava e não pagava. Quis um video-game, foram 500 não pagas. Rolou a bola de neve. Quando quis um beijo de Joana chegou a 2000 aves-maria , 1000 padres nosso e aos 15 anos. Beijou, e pergunte se pagou? Fez primeira comunhão e no momento de confessar ao padre pela primeira vez teve a ingenuidade de declarar o débito em aberto. O padre exigiu as corretas retratações. Julgou-se brando, honesto, nem cobrara o juro da dívida. Somente quis ver a pendência completamente quitada. Fingiu que pagou, comungou e nunca que apareceu de novo na Igreja. Medo bravo do Padre descobrir o embrulho.

Depois de muita reza longa, muito choro inútil, a noite foi-se por final e o funeral morreu na manhã seguinte. O grupo de reza foi comiciar em outras freguesias junto do Padre, os outros parentes, de olhos fundos, despediram-se, e sobraram os dois irmãos. A menina foi para a casa da tia. Ele sumiu.

Apareceu na roda de poker na mesma noite. Como se ninguém soubesse da morte dos país de Jõao Gustavo a noite procedeu-se, afinal ele estava lá e procurava jogo. E lá nunca que fora João Gustavo, nem só Jõao, nem muito menos Gustavo. Era o 'Carne Frita'. Famoso jogador. Não só por sua sorte, era rara noite em que não ganhava uns trocados, mas também pela experiência de raposa treinada, desse a oportunidade ele engaubelava todo mundo em um engodo. Era mestre em lidar com as cartas. Se ninguém percebesse podia distribuir qualquer jogo para os parceiros, e o melhor, para si também. Não foi uma só vez em que deu de generosidade aberta um four para um presente na mesa, o problema é que os parceiros, afoitos, apostam até as cuecas e os dentes da cara e não vêem que ele sempre tem um strait flush para a quebra. Sobrevivia como malandro das miudezas que ganhava na trampolinagem.

Sala grande horrenda, mesas de feltro verde iluminadas por lâmpadas dependuradas somente pelo fio, baratas passeando e restos de comida espalhados no chão. Muitos presentes. Oito mesas ao todo. Quase setenta concorrentes ao montante, grana, bufufa. Com a morte dos velhos tinha se esquecido do campeonato de hoje. Prêmio enorme. Dava para se virar muito tempo na vadiagem, quem sabe até não re-investiria e quadruplicaria com o tempo a bolada hoje em jogo. As regras explicadas, os campeões de cada mesa se encontrariam em um final para a disputa do prêmio. O jogo começará em uma hora. Boa sorte senhores. O problema, a entrada custava mil reais. Onde é que arranjaria mil reais a essa hora? E aonde? Lembra do lugar em que virara a noite anterior.

Ainda bem que fiz a limpa. Despeja os espólios na mesa do gerente, concedem o crédito e adentra na competição. Tinha vinte minutos de lambuja, pede uma caninha. Tragada curta e que incendeia. Anima os animos. Pede mais uma, e ela vem incendiando. Corpo de bombeiros aparece, lembranças da competição, sabe que precisará de todas as forças de concentração para o jogo, resolve que essa teria sido a última mas toma outras duas.

Cartas na mesa. Charutos ascesos. Começa o jogo. Pinguços de pinga pingam o pingo. E o tempo pinga noite adentro. Carne Frita. Frita os miolos no pensar. Aposta. Perde. Recupera. Blefa. Mete medo. Ganha. Baralhos a trocar de mão. Hesita. Cai fora. Vê um a um os oponentes perderem o leite das crinças e a pinga dos seus. Dinheiro se ganha na mesa e é na para a mesa que ele vai. Afora com bebidas, Carne Frita sempre chora ao pagar a vida com o dinheiro chorado do poker. Campeão da mesa, vai para a final, pensou. E campeão da mesa se tornou e para a mesa final foi.

Mesa final, prêmio de cinquenta mil. Aimeudeusminhanossasinhora! Cinquenta mil é bocada. Tenho que ganhar, nem que tiver que roubar. Na noite não houvera momento propicio para o roubo. Quando as cartas estavam na sua mão a fama lhe jogavam os olhos atentos em cima. Distribuia-as sempre sacanagem, na limpa, na vera. Jogou como nunca, sem trampa. E ainda conseguiu para na mesa final, e agora não estava se dando nada mal. A sorte lhe sorria com boca aberta e um sem mar de dentes faltosos. De oito a quatro, quatro fora e quatro dentro. Dos dentro Carne Frita e outros três. Dos fora uns três qualquer mais Zé Bedeira. Perdera em uma mão infantil, apostou as calças e as chupetas do filho encomendado para o ano seguinte quando viu completo o seu flush de copas, perdeu para um full house maldito e imprevisto. Voltou de cueca e com a visão do futuro filho chupando o dedo.

Recebe uma carta. Ás negro. Outra. Valete negro. Mais uma. Dama Vermelha. Espera as outras duas e vê em seguida Dama negra e dez negro. Que incrível coincidência, das cinco cartas possuia três de espadas, o ás pontudo espetado, o valete de faca e a dama de adaga. Pedida para Royal. Tenho um par de damas, também... e ainda uma pedida para sequência. Jogo largo, grande. Que fazer, que fazer? Um qualquer, antes da pedida, no meio do pensamento de Carne Frita, grita All in. Não tinha muito, mas nessa altura do jogo qualquer pouco era alguns milhares de reais. Esse aí está de pé cheio, com carregamento de açúcar no lombo do burro. Ainda bem que isso aqui não é truco. Revidava seis era agorinha. Todos pagam a entreda sem titubear, sentia-se que era essa a mão derradeira. Depois disso sem mais jogo, o vencedor com tudo, com todas as batatas e os outros malandros famintos, sem pinga e com os filhos a chorem a chupeta.

Na mesa, Carne frita, e em sentido horário: o safado do all in, o blefador que se acha esperto e aquele último que dealava as cartas. Quem pede primeiro? O Safado do all in. Todos olham para ele. Atentos, espiavam ver qualquer sinal de jogo ou a falta dele. Espera-se a pedida de cartas e lá vem ela:
- Não quero nenhuma.

VIADO. Tá de blefe. Certeza. Vá roubar no mato, pé de pato. Vez do blefador nato. Momentos de atenção, todos os olhos. Esse pede:

- Duas, faz favor.

Duas cartas vão, duas cartas voltam. Esse ai está de trinca. Foi pro four. Batata. Vez do dealer. Anuncia que quer só uma. Maroto. Nunca dá para saber de pé aquilo que se pede com uma, mas é pedida para prêmio, disso não se duvida.

- E você, Seu Carne Frita? Quer quantas?

Merda! Sem tempo para pensar, por que nem todo tempo do mundo seria suficiente. Passa-se trinta segundos. Indecisão. Todos observam na esgueira. Esse aí que só pediu uma, tá cheio. Vai vir com tudo. Só tenho um par. Se eu pedir três, faço uma trinca, no duro, four nunca, muito difícil. E para bater esse aí só de trinca, vai dar pé mão. Agora? Vou de sequência ou arrisco o Royal? O blefador pediu duas. Tá de blefe. Sempre. Ou de trinca. Vá saber? O Safado do all in também. Esse é blefe sujo, certo. Vai para o Royal. Mantém a coleção de espadas, vai-se duas cartas outras vem.
Começam as apostas. Carne frita sem coragem de ver as cartas. Safado do all in:

- Quem começa sou eu e já gastei toda banha da janta, agora é com vocês.

Pede mesa e fica para trás. Blefador, aposta pequeno. Malicioso. Dois mil a mais. Pequeno apertivo de aposta para o jogo que com certeza resolve a noite. O distribuidor de cartas, olha as suas, ri de canto de boca... Sinal! Quando ri assim é por que está fingindo euforia de que tem coisa quando na verdade tem é nada. Aposta tudo. Esse tá no papo, não me intimido com joguinho de mente não. Nosso João Gustavo na qualidade de Carne Frita resolve ver seu jogo. Pega as cartas recebidas e embaralha-as com as outras três que sobraram. Vá lá Deus. Me renda. Manda esse Reizinho querido acompanhado das Dez felicidades espetadas. Tinha essa mania, no jogo era crente fervoroso. Deus existia na mesa. Só e tão na mesa, a presença dele era confirmada no veltro verde. E com ele se dava, mas só nos momentos de muita necessidade, como agora. Precisava do jogo. Jogo certo. E onde Ele se mostra com mais evidência em uma mesa? No chorinho. Todas as cartas antes de serem vistas, são carta alguma, são carta nenhuma e portanto são carta qualquer. A carta que está mão de um jogador é aleatória antes de vista, e com certa graça elas todas se transformam entre si. Brincadeira boba de baralho. O ás antes de visto, era um oito ao passar na mão do dealer, ao cair na mesa foi um seis, dez quando se a pegou. Se transformam pela última vez logo antes de se exibir mas depois, são certas, selam o seu destino e o do jogador e pronto. Coisa de Deus, divino.

Embaralhou as cartas e armou seu típico montinho. Todas cartas em cima da primeira. Levantou a pilha. Viu a primeira, um rei de espadas. Coração Gelado. Mão tremendo impercepitivelmente. Deus, Deus. Foi ele. Começou a chorar as outras cartas. Sabia que iria encontrar a Dama, o Valete e o Ás. Puxou a última carta do monte bem devagarzinho, na tristeza saltitante de quem quer encontrar um dez amigo porém no medo grande de topar com um nove idiota ou um seis lazarento. A carta vai subindo... E subindo vai mostrando a margem branca e uma pontinha preta em V de cabeça para baixo. Vê-se bem a pontinha do ás preto. Ás é carta feliz para o choro. Mostra-se fácil, sem confusão, sem engano.

Os parceiros apreciando a cena tão comum do jogo. O choro de cartas é a emoção maior para um jogador de poker, todos jogam que é para chorar. Nada substitui a emoção de se arrumar o montinho, cartas conhecidas e desconhecidas embaralhadas. Ordem em desordem. Quem sabe a sequência de cartas que virá no choro? Quando em vez uma desconhecida salta logo de primeira, a carta que fica na boca do montinho. Azar, acaba-se com a graça do choro. Muito melhor teria sido ela ter ficado no meio, resgardando a sua identidade anônima detrás das outras. Exaltação maior do que ver uma a uma as cartas serem abertas no costumeiro movimento. Escorregando-as devaguarzinho, com todo tempo do mundo, até desvelarem com sua nudez explícita o topo da carta. Algumas são inconfundiveis como o ás e o rei. O ás mostra a pontinha do A, o rei os dois pauzinhos superiores do K. Outras são incognitas no meio da multidão. Como diferenciar um nove, de um oito, de um seis ou uma dama ainda? Na alegria de jogador, com prolongamento do choro, ora essa? Puxa-se mais um pouco a carta até ela se mostrar indubtavelmente.

Nosso personagem continua o choro. Topou com o rei na boca do monte, passou pelo ás, encontrou a dama, e viu o valete. Sobrou a última. Essa última. Selaria o desfecho da noite. Tomou coragem e sem ver a carta pagou a aposta daquele dealer sem jogo e sobrou uns trocados, 6 mil. Resolveu guardar para ver as contra-apostas.

Passa-se pelo Safado. Re-vez do Blefador. Esse paga o segundo all in da rodada e mete seis mil a mais. Justamente o que tinha contado como a reserva do Carne frita. Estava ganancioso. Queria tudo de todos. O Safado do primeiro all in só olhava, julgava vitoria na certa do Blefador.

Que fazer? Esse corno, que sempre blefa, esta agora no de sempre. Blefando. Ainda sem ver a última carta. Aposta os seis mil. Coragem audacioso de quem crê em sua fé. Deus era um ordinário no modo geral, mas ali era o todo poderoso protegedor dos choradores. Hora de mostrar a mão. Blefador faz mistério, era ele quem deveria abrir primeiro. Hora final do teste da fé. Carne frita se resolve abrir a última carta. Se me vira um dez, o dez de espadas eu juro por ti meu Senhor que rezo 10.000 aves-marias e 10.000 pais nossos. Está valendo.

Começa o choro, quase pranto, da última carta inconhecida em trânsito de emconhecimento. Aparece a margem branca da carta. Blefador arria o jogo, o choro é suspenso. Four de dez. Dez de copas, dez de ouros, dez de paus... Dez de espada. MERDA! Se o dez está lá não está aqui. Viado! Blefador de araque. O dealer admite derrota e o Safado também. Carne frita revoltado, puto, joga as cartas na mesa e mostra o quase Royal Straight Flush. Todos se impressionam. Gritos, correria. Silêncio. Todos percebem o exdruxulo da situação. Impressionado olha ao redor. Olha a mesa. Vê que a carta não chorada até o fim é um dez de espada. Choque. Dois dez de espadas. Um no four do Blefador outro no seu Royal. Grita:

- LADRÃO. Trampeiro duma figa. Filho da puta. Que porra é essa de four de dez?

Gritaria. Quebra pau. Porrada estoura no lugar. E não é que Carne Frita fez o Royal? Falta saber se dessa vez ele paga as 20.000 em dívida com seu Deus particular, aquele que fez o milagre da múltiplicação dos Dez.

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