domingo, 21 de fevereiro de 2010

A menina que cheirava tudo e o menino que não via nada.

(Findas as desnecessariedades de autoexplicação, passo agora a minha arte, já que agora eu, O Autor, escrevo tanto desengajadamente e com tamanha leveza quanto aquelas que me fizeram famoso e reconhecido mundialmente no circuito literário. É interessante saber que ninguem nunca perguntou-me o nome, meu nome. Sou famoso mas meu nome quem sabe?, sou reconhecido mas nunca vocativo... Onde já se viu? Bom, vamos ao conto.)

Contraposição. Uma do tudo, outro do nada, esse mesmo, dos não olhos e aquela outra do nariz. Uma via, outro não, aquela mesma uma cheirava e esse outro mesmo não. O do nada, menino, o do tudo, menina. Duas crianças. Vieram não se sabe donde ou como e assim se foram de mesma forma, mas sabe-se que conversavam a beira-mar e foi mais ou menos assim.

- Eca! Que cheiro de eca.
- Como assim? Eca não é cheiro.
- É sim, tem cheiro de eca.
- Eca é grito que mamãe dá quando me vê com o dedo no nariz, bem assim ó...
E enfia o dedo no nariz. Ela grita:
- Eca! Que nojo.
- Isso mesmo, igualzinho ao que ela faz.
Agora sem o dedo atochado, se duvida e pergunta:
- Que cheiro tinha a sua outra eca?
- Tinha cheiro de menino que vai por o dedo no nariz.
- Mas como, se eu nem tinha posto?
- Era igual.

Os dois permaneceram mudos, a conversa esmoleceu. O menino com vergonha do dedo que frequentou onde não devia, ela sentindo a sinfônia de cheiros do mar. Porque mar não era palavra, nem azul, era cheiro. Da mesma forma era o pai, não era ronco nem chapeu com cachimbo, era cheiro. O cachorro, não era festa nem rinite, era cheiro, e quê cheiro. O silêncio das ondas só foi interropido com a deixa:

- Quando é que foi que você passou ver tudo de nada?
- Eu é que não me lembro de nunca ter visto assim como gente que vê. Meu pai me diz assim desde pequeno: "Menino, quando você nasceu Seu Doutô Médico disse que seu Pá era um homem de muita sorte. Ele disse que você enxergava que nem Monet pintava, e que nada podia acontecer para ser doutro modo."...

O homem pai, chucro, não entendendo nada, mas ouvindo o nome Monet, nome de famoso, talvez francês mas com certeza pintor, Monet, que ouvia de quando em quando na tv, ouvia, porque também não via nada direito, achou que o filho tava era predestinado a genialidade. Desde então é que dizia para todos os vizinhos que davam trela que seu filho já via como o gênio Monet e que só faltava era o menino ter idade de grande para poder pintar de tudo que via no couro do quadro.

-... Sabe como é, vejo tudo diferente assim desse jeito como você sente esses cheiros doidos.
- Cheiro não é doido, não. Já até senti cheiro de doido uma vez, meu tio era, sabe? Era cheiro de quarto fechado com pouca luz. Juro por Deus! E os cheiros que sinto não são doidos assim pois se fossem, eles é que cheiravam igual meu tio. E seu ver, como é?
- Dum modo meio torto, nada é nada que é. Tá vendo o horizonte? Então, sabe onde o mar acaba e o céu começa? Bom, eu não vejo, para mim horizonte não existe. Mas para ficar aqui no pertinho, o seu cabelo, é negro, preto do tisnado dos carvoeiros, isso eu vejo bem, mas quando caem nos seus olhos pretos não sei mais que que é cabelo que que é olho.
- Não entendi.
- Arrr, você nunca que entende nada. Fala disso tudo aí de cheiro que eu mais finjo, que entendo, e não faz pensar direito nessas bobeira que eu falo. Vou explicar de outro, para e pensa igual que a gente faz na aula de tabuada. Tá vendo aquela árvore ali, lá para as banda do mângue? Então eu sei que as folhas existem por que eu vejo uma a uma no chão depois, mas agora é tudo um grandão verde, como se fosse tudo de um só.
- Ah, entendi.
- Entendeu, é?
- ...
- 'ntendeu é nada. Vou falar de novo, pela última agora. Ouve direito menina. Eu vejo é igual um lápiz, tudo quanto é letra e frase está tudo ali dentro, prontinha para ser escrita, e como não sabe o que eu vou escrever ele é que tem que ter de tudo ali dentro, prontinho, guardado na espera. Acaba por ficar tudo apertadinho, e é por isso que o grafite é preto, é a cor da confusão de todas aquelas letras e palavras que ficam ali dentro, espremidinhas. Eu só não vejo as coisas porque está tudo uma sobre a outra e a outra sobre a uma, num fuzuê só, quem nem no lápiz. Nada tem começo e fim, borda é que não há, tudo se mistura.
Fascinada com a descrição, a menina, diz:
- Seu mundo é que deve de ser legal. Quando você olha para ele nenhum país é que faz fronteira com nínguem, daí você poder ir a canto todos sem passaporte, é ou não é?
- Acho que sim.

Novo silêncio. Novos cheiros, novas vergonhas.

A menina puxa seu cabelo para o nariz e funga-o.
- Gosto tanto do meu cabelo...
- É, eles são bonitos, igual ao pelos do casco de Jurema.
- Jurema?
- Jurema, meu jabuti.
- AH, você se é tão estranho, me acha um jabuti.
- Você até que se parece com um, quando não conheçe alguém não tira a cabeça do seu casquinho que nada, mas depois vai lá e tasca uma mordida no dedo da gente.
- E você que só sabe de chocar as pessoas. Parece que faz de gosto!

Outro silêncio. Sem cheiros, só vergonhas.

Cabelo de novo no nariz. Vaidade ofendida:
- Ei, cheira meu cabelo, vê se tem aroma?
- Já disse que não vejo direito. Vai adiantar de nada não.
- Sim, mas cheira de qualquer.
O menino pega um tufo e leva ao nariz:
- Tem cheiro de nada, falei que não via!
Vaidade outra vez no chão:
- Pois para mim tem cheiro do que é. De preto. Tem sabor de negrume de mato quieto após chuva.
- Pode até ser, mas para mim tem cheiro de sabão de banho.

Mundo surdo-mudo mais outro tanto.

A menina se endireita, move sua cabeça em direção da do menino, para a poucos centímetros. Lábios quase se encostam. Uma fungada. Um cheiro. Um dito. Ela:
- Seu lábio cheira assim como vontade de doce. Sabe quando a gente para na vitrine da doceria e sente na boca o doce doutro lado, só na vontade de entrar e roubar um...?
Pausa, sem silêncio: corrida de corações pulsantes.
- Sei sim como é o cheiro de lábio, o seu é igual.

E o menino que nada tinha em comum com ela, acabou aprendendo como é que é cheirar de tudo.

Fim

2 comentários:

  1. Adorei esse! Prefiro esse jeito matuto. Acho melhor que os acdemicismos fiquem para a academia.
    De verdade, achei sensivel e bem escrito. Talvez a sua voz seja um meio do caminho entre este e aqule, q tal? Ou essa matutisse e obra do ultimo Guimaraes q vc leu? Bjs

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  2. Esse paragrafo e particularmente bom:
    Os dois permaneceram mudos, a conversa esmoleceu. O menino com vergonha do dedo que frequentou onde não devia, ela sentindo a sinfônia de cheiros do mar. Porque mar não era palavra, nem azul, era cheiro. Da mesma forma era o pai, não era ronco nem chapeu com cachimbo, era cheiro. O cachorro, não era festa nem rinite, era cheiro, e quê che

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