sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Linha 12 bis.

"Você era morena, doce, linda. Eu era pequeno, tímido, besta. Estavamos na linha 12 e você desceu em Concorde. Ao sair me pediu licença de uma maneira polída, lembra de mim?"

Saiu assim no jornal o meu anúncio, do lado de outros tantos vendendo carros, apartamentos, oferecendo empregos ou buscando um. Eu procurava ela. Demorei um dia de ansiedade para publicar, foi no jornal Liberation. Cento quarenta e quatro caracteres tipográficoss. O melhor que consegui fazer sabendo que devia respeitar o limite de 150, sem contar os espaços, porque mais não poderia pagar. Saiu já faz um tempo, uma semana. Não tive resposta.

Foi a primeira vez que eu a vi. Como era bela. Metrô de Paris é assim: chaque coup d'œil un amour. Mas com ela foi diferente, me senti esquisito, embarassado, revirado. Ela portava um vestido roxo beringela com uma grossa faixa branca amarrada na cintura fina, um batom vermelho nos lábios rosa, um sapato preto nos pés brancos mas um arco negro nos cabelos negros. Era fina, sensivel, delicada. Gostaria de revê-la ao menos uma vez, e nesse encontro conversar, porque eu já me criei-a tantas vezes na cabeça, um delírio de mulher todas as vezes. Compara-la com meu sonho dela.

Vendo-a sonhei um sonho doce de não querer despertar, mas a estação chegou e o aviso sonoro de fechamento de porta me acordou. Ela foi-se, eu também, ela não sei onde, eu para Madeleine: próxima estação. Entretanto, correndo atrás foi meu anúncio... e se ela lê somente o Le Parisien ou quem sabe o Le Monde? O dinheiro é curto e eu publiquei somente no jornal que leio, ingenuidade pensar que ela compra o mesmo, ainda mais que se detenha a ler seção de anúncios. Quem sabe, a vida é cheia dessas coincidências?

Vai saber espero que ela não responda, pois há muitas respostas possíveis e nem todas elas eu gostaria de ouvir. "Claro que lembro. Eu também te reparei. Achei você muito simpático além de bonito, que tal marcar um copo? Me ligue 01 49 42 87 64, me chamo Michelle. Bisou" Eu acho que Michelle é um belo nome, e combina com ela. Eu ligaria, ou melhor eu liguei, vai que nas bizarras coincidências da vida eu não acertara o número da casa dela, sem querer, no sonho de dia-a-dia? Puxei o telefone e liguei, atenderam, pedi para falar com Michelle mas ninguém morava lá com esse nome. Depois lembrei que não conhecia Michelle como conhecia minha projeção dela e que bem poderia se chamar Camille ou qualquer outro nome.

Outro dia, na linha 9 jurei que a havia encontrado, estava loira, sem arco, sem beringela mas ainda bela. Quem sabe mudara? Quem sabe era outra? Faz já algum tempo que nos desencontramos e começo a esquecer seu rosto, tenho dificuldades para lembra-lo e já não tenho mais a certeza se é lembrança ou invenção. Resta somente as lembranças das lembranças que podem nem ser suficientes para distingui-la na rua, se a encontrasse. Ainda bem que Paris esta repleta de belas mulheres e também de linhas de metrô para encontra-las.

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Alegoria da Morte.

Um quarto, um vazio, uma janela, um vazio, eu, mais eu vazio, e outras vezes mais o vazio do meu eu. Infinitamente eu, e o vazio infinito. O vazio meu que faz companhia ao Vazio, eles trocando as confidências, olham um para dentro do outro e descobrem que todos os vazios são repletos de.

O grande mistério da vida, da morte e tudo mais além, se resume ao vazio de um quarto branco e a uma vida vazia de tão branca. No meu quarto há meu quarto, eu e mais o pórtico para o vazio cheio que me faz companhia e a que se chama vida. Porque estou preso neles, no quarto e no vazio, da mesma forma que eles estão presos a mim: quartodespensa do vazio. O branco do quarto faz contraste ao vazio cheio de cor e barulho, e tudo mais que é vazio, que vejo pela janela.

As religiões do mundo procuram todas a verdade do pós-morte. Pois então que nada mais verdadeiro que a morte em si, eu já morri faz muitas vidas, infinitas passadas, infinitas por vir. Eu vivi uma vida cheia depois morri, igual a todas como todos julgam. Morri e me encontrei nesse quarto branco com essa janela que é o inferno. Um quarto pequeno com uma grande janela e por ela se vê toda a vida que se vê quando se vive.

Essa é a morte, ou melhor, o além morte. A condenação a toda a vida, novamente. Eu fico aqui sentado, prostado, preso a rever a minha vida, a reviver do começo ao fim, da não vida até a morte e quando eu me vejo morrendo entra em cena o meu nascimento. Um filme em loop, encadeado, infinito. Faz muitas vidas que morri. Perdi a conta, já não sei mais. A única coisa que sei é minha vida toda, sem resalvas, e toda a consequência que daí advém.

A primeira conclusão que se chega, a que cheguei, pois não assumo que tenham outros como eu que não Ixon, Prometeu, Tântalo e Sísifo, é que a vida é presa ao seu próprio vazio e não importa o que, tudo perde o sentido face ao infinito. O infinito é a arma mais poderosa que existe, ele me oprime e quem sabe vai te oprimir também quando você morrer. É a única prisão inescapavél, o inferno mais macabro, a tortura mais dolorosa, o vazio.

Considerar que cada ato que escolher será escolhido para sempre, irrevogável como a sentença do juiz imparcial sobre o réu culpado, é a vida. Toda ela, toda felicidade, toda tristeza, toda as coisas minúsculas ou mesmo as grandiosas, toda mesma sequência... por sempre mais, sempre vezes mais. Soubesse antes viveria diferente, e nada teria mudado, pois tudo é nada frente ao infinito. O infinito é cheio de nada e esmaga tudo que é nada também.

Vejo minha vida e sinto essa Náusa frente ao Absurdo errático que é a resposta dela frente a minha consciência racional, de morto. A náusea é branca o absurdo é vazio, e os dois são a mesma coisa. Isto não é tudo, isto não é nada. As duas caras da mesma moeda, duas aparências para a mesma coisa, duas palavras que são a mesma.

Imagino toda a vida que vivi e percebo que ela só pode existir dentro de mim, habitat do nada, porque o ciclo infinito mesmo pesa infinitamente menos que a condenação a toda vida não vivida. Todas as possibilidades, tudo aquilo que não foi, do que poderia ter sido, de tudo que eu disse não, tudo que eu queria fazer e não tive coragem, tudo que eu evitei, todas experiencias que não tive, todos os livros não lidos, tudo que não aprendi a fazer, tudo que não senti, de todos que não conheci, de todos que não amei, de tudo que corri de, de tudo que eu quase fiz... e por fim ter a consciência disto tudo, nada que fiz!... será nada para sempre, será nada pois veio dele, e tudonada que não vivi será condenado a prisão de dentro de minha cabeça, de dentro de minha vontade. O Branco.

O quarto é branco e tem razão de ser assim. O branco é a impressão no olho de todas as cores. Da mesma forma é a vida, ela é o conjunto das situações que a compõe. O quarto não poderia ser preto, que é cor alguma, pois está no preto todas as cores que não existem, pois o quarto branco está lá para mostrar o branco; conjunto da vida, mas só para resaltar o preto que é tudo o que não foi. Infinitamente maior que o branco, o Preto.

Lembre-se toda a vida não vivida permanecerá para sempre não vivida. Lembre-se disso e escolha bem o que escolher. Pois eu sou a Morte eu estou dentro de você. Lembre-se que estará preso para sempre no quarto branco. Lembre-se que é no preto que permanece toda a esperança de vida futura, que o preto são todas todas as cores que não conhecemos. Onde se encontra toda vida possível.

domingo, 15 de agosto de 2010

Lingua.

Linguas são feitas para beijar mas a gente também escreve com elas. Passa ela na tinta, depois no papel, que gosto que tem? Pode ter gosto de tudo, que é também um jeito muito complidado de dizer nada. Eu exercito minha lingua, você exercita a sua? De saliva cuspida ou com palavra dita?

Sou brasileiro, falo português, e amo minha língua, mas como minha língua é também língua de muita gente por aí, posso concluir silogisticamente pelas premissas que amo a língua de muitas pessoas. Amo a palavra e a saliva. Por que saliva é palavra mas que não há palavra que se sustente em boca seca sem saliva.

Palavra é literatura, uma lambida dadaísta. Lembre-se Dada começou com tudo. Com a palavra, com a saliva, com a palavra feita de saliva, com a saliva na palavra, com a palavra saliva e com a saliva palavra. Dada. Dada palavra e dada saliva, dá ou não dá?

Sinto falta do português e de usar ele na minha língua, na minha língua a língua. Saudade, palavra linda: de tão difícil tradução mas que não há uma língua da língua portuguesa que não sinta seu sabor amargo. Eu quando sinto saudade da língua eu beijo minha língua, ouço chico buarque e escrevo literatura. Dada começou com tudo e eu, termino.