sábado, 27 de fevereiro de 2010

O Orador.

O hábito faz o monge. No caso, fizeram-as velhas, feias, arremesaram os bons tempos de suas vidas pela janela abaixo, gastaram tudo do pouco que haviam nascido e agora não possuiam nem a memória de um beijo quente, de uma carícia, de um homem. Solteironas, isso que eram, além de caçadoras de preocupações alheias, mas lá onde mal viviam tinham outro nome: oradoras.

Todo mundo conheçe um grupo desses e todo bairro tem um, mesmo nos mais excomungados, ou sobretudo nesses. Passam a tarde a bocejar o tédio em coral, conversam sobre os últimos casos preocupantíssimos da paróquia e quando esses faltam, as grandes catástrofes mundiais entram em cena, isso tudo com os deliciosos quitudes que só a experiência de uma mulher morna e nunca amada é capaz de cozinhar. Essa estória é delas... ou quase. Fiquemos ao quase por agora.

- Meninas, meninas... Prestem atenção.
Chamavam-se por meninas essas senhoras de sessenta anos para mais, pois mesmo as mais jovens, as de quarenta, já possuiam a catadura de tias-avós. Era a chefe que falava. Chefe, aquela que manda, as outras só seguiam, pois todo grupo de reza tem esse tipo, aquela que se supõe mais santa, mais casta, mais pia, e contráriamente e ainda assim, a mais humilde. Discursava:
- Meninas... O assunto é gravíssimo. Os Pereiras da rua de cima faleceram.
Todas com muito decoro se portam lúgubres, com cera, o contrário de sinceras. Sem cera. Essas com muita cera em suas máscaras, ninguém se importava com a notícia e muito bem passariam sem ela, continuariam com suas caras saltitantes, sorrisos cheios de bolo e conversa pequena.
- OH! Meu Deus! Que Ele os tenha.
Outra lança:
- Temos que encomendar-lhes a alma a Ele...
- Então. O funeral será amanha. Mas hoje vamos nos propor a velar o corpo em terço. Retruca a chefe das oradoras.
Deliberado os pormenores todas se encaminham mais a noite a casa dos recém mortos. Corpos encaixãotados em cima da mesa. Sala transformada em capela. Círios, velas, padre. O Padre. Aquele a quem elas tudo faziam, fazendo para agradá-lo. Falam aos filhos do casal. Pesames, carpem os mortos, tudo do combinado da pauta, ok. Começam a reza, ou melhor aquela da liderança:
- Deus todo poderoso, Senhor dos céus, Pai de todos, perceba o sofrimento dessas almas que agora suplicam em pesar. Traga benção a todos desta sala...
E o coro:
- Sim, Deus!
Punham tanta força na palavra 'deus', talvez por acharem ser sinal de medir-lhes a devoção, que todas as frases eram exclamativas. Deus!
- Deus, Grande, Misericordioso, tende piedade de nós e acolha essas almas que partiram.
- Sim, Deus! Acolha. Todas gritam em fervor.

E assim continuam. O funeral de manso tédio viu crescer a euforia dos palanques politícos. Familiares dos defuntos, embarassados, mas nada faziam ou falavam. Eram dois os filhos deixados, Paulinha, menina franzina de 12, e Jõao Gustavo, já de 18, um homem parrudo de maus hábitos. A pobre crinça e o homem raivoso.

Ela sentia-se abondonada, de choro preso tinha a mente embotada desde o acidente de carro que levou seus pais, ele fulo da vida, tinha acabado de acabar a escola, largado na penura, nem um tostão os pais lhe deixaram. Antevendo a miséria, ou pior, o trabalho, enxovalhava a todos, os país mortos, a irmã pequena e seu peso, o padre idiota e principalmente aquelas senhoras que nunca nem tinha visto na vida e que tinha entrado e agora gritavam a deus. Deus, aquele idiota! Se passa aqui pulo na garganta dele. Mas se bem que se me arranjasse um modo de só farrear, bem que pagava umas 10.000 aves-maria. Não pedia a ressureição dos pais, só pedia um jeito de continuar na vida boa, ser malandro para sempre.

Ele tinha problemas com Deus, acreditou nele e no papai noel na infância, tomou um susto descobrindo a farsa do bom velhinho e se estrepou nas promesas que fazia ao Senhor. Queria um pirulito, prometia 5 aves-marias. Ganhava, não pagava a dívida. Queria não reprovar de ano na escola , prometia 100. Passava e não pagava. Quis um video-game, foram 500 não pagas. Rolou a bola de neve. Quando quis um beijo de Joana chegou a 2000 aves-maria , 1000 padres nosso e aos 15 anos. Beijou, e pergunte se pagou? Fez primeira comunhão e no momento de confessar ao padre pela primeira vez teve a ingenuidade de declarar o débito em aberto. O padre exigiu as corretas retratações. Julgou-se brando, honesto, nem cobrara o juro da dívida. Somente quis ver a pendência completamente quitada. Fingiu que pagou, comungou e nunca que apareceu de novo na Igreja. Medo bravo do Padre descobrir o embrulho.

Depois de muita reza longa, muito choro inútil, a noite foi-se por final e o funeral morreu na manhã seguinte. O grupo de reza foi comiciar em outras freguesias junto do Padre, os outros parentes, de olhos fundos, despediram-se, e sobraram os dois irmãos. A menina foi para a casa da tia. Ele sumiu.

Apareceu na roda de poker na mesma noite. Como se ninguém soubesse da morte dos país de Jõao Gustavo a noite procedeu-se, afinal ele estava lá e procurava jogo. E lá nunca que fora João Gustavo, nem só Jõao, nem muito menos Gustavo. Era o 'Carne Frita'. Famoso jogador. Não só por sua sorte, era rara noite em que não ganhava uns trocados, mas também pela experiência de raposa treinada, desse a oportunidade ele engaubelava todo mundo em um engodo. Era mestre em lidar com as cartas. Se ninguém percebesse podia distribuir qualquer jogo para os parceiros, e o melhor, para si também. Não foi uma só vez em que deu de generosidade aberta um four para um presente na mesa, o problema é que os parceiros, afoitos, apostam até as cuecas e os dentes da cara e não vêem que ele sempre tem um strait flush para a quebra. Sobrevivia como malandro das miudezas que ganhava na trampolinagem.

Sala grande horrenda, mesas de feltro verde iluminadas por lâmpadas dependuradas somente pelo fio, baratas passeando e restos de comida espalhados no chão. Muitos presentes. Oito mesas ao todo. Quase setenta concorrentes ao montante, grana, bufufa. Com a morte dos velhos tinha se esquecido do campeonato de hoje. Prêmio enorme. Dava para se virar muito tempo na vadiagem, quem sabe até não re-investiria e quadruplicaria com o tempo a bolada hoje em jogo. As regras explicadas, os campeões de cada mesa se encontrariam em um final para a disputa do prêmio. O jogo começará em uma hora. Boa sorte senhores. O problema, a entrada custava mil reais. Onde é que arranjaria mil reais a essa hora? E aonde? Lembra do lugar em que virara a noite anterior.

Ainda bem que fiz a limpa. Despeja os espólios na mesa do gerente, concedem o crédito e adentra na competição. Tinha vinte minutos de lambuja, pede uma caninha. Tragada curta e que incendeia. Anima os animos. Pede mais uma, e ela vem incendiando. Corpo de bombeiros aparece, lembranças da competição, sabe que precisará de todas as forças de concentração para o jogo, resolve que essa teria sido a última mas toma outras duas.

Cartas na mesa. Charutos ascesos. Começa o jogo. Pinguços de pinga pingam o pingo. E o tempo pinga noite adentro. Carne Frita. Frita os miolos no pensar. Aposta. Perde. Recupera. Blefa. Mete medo. Ganha. Baralhos a trocar de mão. Hesita. Cai fora. Vê um a um os oponentes perderem o leite das crinças e a pinga dos seus. Dinheiro se ganha na mesa e é na para a mesa que ele vai. Afora com bebidas, Carne Frita sempre chora ao pagar a vida com o dinheiro chorado do poker. Campeão da mesa, vai para a final, pensou. E campeão da mesa se tornou e para a mesa final foi.

Mesa final, prêmio de cinquenta mil. Aimeudeusminhanossasinhora! Cinquenta mil é bocada. Tenho que ganhar, nem que tiver que roubar. Na noite não houvera momento propicio para o roubo. Quando as cartas estavam na sua mão a fama lhe jogavam os olhos atentos em cima. Distribuia-as sempre sacanagem, na limpa, na vera. Jogou como nunca, sem trampa. E ainda conseguiu para na mesa final, e agora não estava se dando nada mal. A sorte lhe sorria com boca aberta e um sem mar de dentes faltosos. De oito a quatro, quatro fora e quatro dentro. Dos dentro Carne Frita e outros três. Dos fora uns três qualquer mais Zé Bedeira. Perdera em uma mão infantil, apostou as calças e as chupetas do filho encomendado para o ano seguinte quando viu completo o seu flush de copas, perdeu para um full house maldito e imprevisto. Voltou de cueca e com a visão do futuro filho chupando o dedo.

Recebe uma carta. Ás negro. Outra. Valete negro. Mais uma. Dama Vermelha. Espera as outras duas e vê em seguida Dama negra e dez negro. Que incrível coincidência, das cinco cartas possuia três de espadas, o ás pontudo espetado, o valete de faca e a dama de adaga. Pedida para Royal. Tenho um par de damas, também... e ainda uma pedida para sequência. Jogo largo, grande. Que fazer, que fazer? Um qualquer, antes da pedida, no meio do pensamento de Carne Frita, grita All in. Não tinha muito, mas nessa altura do jogo qualquer pouco era alguns milhares de reais. Esse aí está de pé cheio, com carregamento de açúcar no lombo do burro. Ainda bem que isso aqui não é truco. Revidava seis era agorinha. Todos pagam a entreda sem titubear, sentia-se que era essa a mão derradeira. Depois disso sem mais jogo, o vencedor com tudo, com todas as batatas e os outros malandros famintos, sem pinga e com os filhos a chorem a chupeta.

Na mesa, Carne frita, e em sentido horário: o safado do all in, o blefador que se acha esperto e aquele último que dealava as cartas. Quem pede primeiro? O Safado do all in. Todos olham para ele. Atentos, espiavam ver qualquer sinal de jogo ou a falta dele. Espera-se a pedida de cartas e lá vem ela:
- Não quero nenhuma.

VIADO. Tá de blefe. Certeza. Vá roubar no mato, pé de pato. Vez do blefador nato. Momentos de atenção, todos os olhos. Esse pede:

- Duas, faz favor.

Duas cartas vão, duas cartas voltam. Esse ai está de trinca. Foi pro four. Batata. Vez do dealer. Anuncia que quer só uma. Maroto. Nunca dá para saber de pé aquilo que se pede com uma, mas é pedida para prêmio, disso não se duvida.

- E você, Seu Carne Frita? Quer quantas?

Merda! Sem tempo para pensar, por que nem todo tempo do mundo seria suficiente. Passa-se trinta segundos. Indecisão. Todos observam na esgueira. Esse aí que só pediu uma, tá cheio. Vai vir com tudo. Só tenho um par. Se eu pedir três, faço uma trinca, no duro, four nunca, muito difícil. E para bater esse aí só de trinca, vai dar pé mão. Agora? Vou de sequência ou arrisco o Royal? O blefador pediu duas. Tá de blefe. Sempre. Ou de trinca. Vá saber? O Safado do all in também. Esse é blefe sujo, certo. Vai para o Royal. Mantém a coleção de espadas, vai-se duas cartas outras vem.
Começam as apostas. Carne frita sem coragem de ver as cartas. Safado do all in:

- Quem começa sou eu e já gastei toda banha da janta, agora é com vocês.

Pede mesa e fica para trás. Blefador, aposta pequeno. Malicioso. Dois mil a mais. Pequeno apertivo de aposta para o jogo que com certeza resolve a noite. O distribuidor de cartas, olha as suas, ri de canto de boca... Sinal! Quando ri assim é por que está fingindo euforia de que tem coisa quando na verdade tem é nada. Aposta tudo. Esse tá no papo, não me intimido com joguinho de mente não. Nosso João Gustavo na qualidade de Carne Frita resolve ver seu jogo. Pega as cartas recebidas e embaralha-as com as outras três que sobraram. Vá lá Deus. Me renda. Manda esse Reizinho querido acompanhado das Dez felicidades espetadas. Tinha essa mania, no jogo era crente fervoroso. Deus existia na mesa. Só e tão na mesa, a presença dele era confirmada no veltro verde. E com ele se dava, mas só nos momentos de muita necessidade, como agora. Precisava do jogo. Jogo certo. E onde Ele se mostra com mais evidência em uma mesa? No chorinho. Todas as cartas antes de serem vistas, são carta alguma, são carta nenhuma e portanto são carta qualquer. A carta que está mão de um jogador é aleatória antes de vista, e com certa graça elas todas se transformam entre si. Brincadeira boba de baralho. O ás antes de visto, era um oito ao passar na mão do dealer, ao cair na mesa foi um seis, dez quando se a pegou. Se transformam pela última vez logo antes de se exibir mas depois, são certas, selam o seu destino e o do jogador e pronto. Coisa de Deus, divino.

Embaralhou as cartas e armou seu típico montinho. Todas cartas em cima da primeira. Levantou a pilha. Viu a primeira, um rei de espadas. Coração Gelado. Mão tremendo impercepitivelmente. Deus, Deus. Foi ele. Começou a chorar as outras cartas. Sabia que iria encontrar a Dama, o Valete e o Ás. Puxou a última carta do monte bem devagarzinho, na tristeza saltitante de quem quer encontrar um dez amigo porém no medo grande de topar com um nove idiota ou um seis lazarento. A carta vai subindo... E subindo vai mostrando a margem branca e uma pontinha preta em V de cabeça para baixo. Vê-se bem a pontinha do ás preto. Ás é carta feliz para o choro. Mostra-se fácil, sem confusão, sem engano.

Os parceiros apreciando a cena tão comum do jogo. O choro de cartas é a emoção maior para um jogador de poker, todos jogam que é para chorar. Nada substitui a emoção de se arrumar o montinho, cartas conhecidas e desconhecidas embaralhadas. Ordem em desordem. Quem sabe a sequência de cartas que virá no choro? Quando em vez uma desconhecida salta logo de primeira, a carta que fica na boca do montinho. Azar, acaba-se com a graça do choro. Muito melhor teria sido ela ter ficado no meio, resgardando a sua identidade anônima detrás das outras. Exaltação maior do que ver uma a uma as cartas serem abertas no costumeiro movimento. Escorregando-as devaguarzinho, com todo tempo do mundo, até desvelarem com sua nudez explícita o topo da carta. Algumas são inconfundiveis como o ás e o rei. O ás mostra a pontinha do A, o rei os dois pauzinhos superiores do K. Outras são incognitas no meio da multidão. Como diferenciar um nove, de um oito, de um seis ou uma dama ainda? Na alegria de jogador, com prolongamento do choro, ora essa? Puxa-se mais um pouco a carta até ela se mostrar indubtavelmente.

Nosso personagem continua o choro. Topou com o rei na boca do monte, passou pelo ás, encontrou a dama, e viu o valete. Sobrou a última. Essa última. Selaria o desfecho da noite. Tomou coragem e sem ver a carta pagou a aposta daquele dealer sem jogo e sobrou uns trocados, 6 mil. Resolveu guardar para ver as contra-apostas.

Passa-se pelo Safado. Re-vez do Blefador. Esse paga o segundo all in da rodada e mete seis mil a mais. Justamente o que tinha contado como a reserva do Carne frita. Estava ganancioso. Queria tudo de todos. O Safado do primeiro all in só olhava, julgava vitoria na certa do Blefador.

Que fazer? Esse corno, que sempre blefa, esta agora no de sempre. Blefando. Ainda sem ver a última carta. Aposta os seis mil. Coragem audacioso de quem crê em sua fé. Deus era um ordinário no modo geral, mas ali era o todo poderoso protegedor dos choradores. Hora de mostrar a mão. Blefador faz mistério, era ele quem deveria abrir primeiro. Hora final do teste da fé. Carne frita se resolve abrir a última carta. Se me vira um dez, o dez de espadas eu juro por ti meu Senhor que rezo 10.000 aves-marias e 10.000 pais nossos. Está valendo.

Começa o choro, quase pranto, da última carta inconhecida em trânsito de emconhecimento. Aparece a margem branca da carta. Blefador arria o jogo, o choro é suspenso. Four de dez. Dez de copas, dez de ouros, dez de paus... Dez de espada. MERDA! Se o dez está lá não está aqui. Viado! Blefador de araque. O dealer admite derrota e o Safado também. Carne frita revoltado, puto, joga as cartas na mesa e mostra o quase Royal Straight Flush. Todos se impressionam. Gritos, correria. Silêncio. Todos percebem o exdruxulo da situação. Impressionado olha ao redor. Olha a mesa. Vê que a carta não chorada até o fim é um dez de espada. Choque. Dois dez de espadas. Um no four do Blefador outro no seu Royal. Grita:

- LADRÃO. Trampeiro duma figa. Filho da puta. Que porra é essa de four de dez?

Gritaria. Quebra pau. Porrada estoura no lugar. E não é que Carne Frita fez o Royal? Falta saber se dessa vez ele paga as 20.000 em dívida com seu Deus particular, aquele que fez o milagre da múltiplicação dos Dez.

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Por que sempre queremos que algo aconteça?

- Ei, você. Vem cá.
- Quem? Eu?
- Vem cá moleque.
Pernas finas de ráquitico na agilididade de vassoura piaçava correndo o chão.
- Está vendo isso aqui? Então, leva esse pacote para mim lá na rua do Boqueirão, detrás da Igreja. Você conhece o Jota, né? Vai lá e leva isso para ele. Mas tem que ser já.
- Ué, o Jota não viaja?
- Escuta o que estou lhe dizendo, essa história de viagem é tudo areia nos olhos dos outros. Enganação. Ele está mesmo é esperando que alguem leve isso para ele.
- Que vá você então...
- Eu não posso, dou muito na vista. Para entregar isso daí tem que ser andando, não pode pegar o onibus não!
Falou ainda para sair fora da rota dos guardas e não espiar nunca, em qualquer hipotese o dentro do embrulho. Saca duas de dois e entrega na mão do pretinho.
- Corre. Vai que quando chegar lá é so esperar o Jota aparecer.
- Mas é longe!
- Chispa.
- Está frio.
Mais uma de dois na mão. Foi-se.
Caminho longo. O pequeno olha o rélogio dentro do bar. Meia noite. Passa a conversar com o nada. Mania de sempre. Mania de sempre mas muito bem escondida. Não gosta de levar troça dos outros.
- Cacete, já é tarde ainda vou levar umas duas horas para fazer o percurso.
Frio.
- Que tal se eu não parasse para um chocolate quente. Tenho grana. Mas não posso, o moço falou que era urgente. Falou?
E vai seguindo no passo cumprido de perna pequena. Passa os bares, vê os bêbados de costume da região. Decide-se pelo chocolate. Enfia a mão no bolso. Alguém pode ver. Entra no bar, dinheiro na mão, pergunta:
- Moço, tem chocolate quente?
- Menino, isso é bar, vai lá ter chocolate quente.
Mas a mulher do dono aparece e com ela logo depois o chocolate. Ela nem que cobra. E o menino volta a marcha.
- Mamãe falou no video-game. Video-game. Falou que no final do ano eu tinha um... Juninho tem, por que também não posso? Do natal não passa.
Falando o passo esmorece. Lembra do pacote em baixo do braço. Que terá dentro dele? Sente uma gota. Outra. E outra. E ainda mais outra. A chuva cai. Ele sem saber para onde ir continua o trajeto. A chuva aperta. Ele entra de baixo de uma marquise. Olha o pacote e vê pelo papel molhado, fino, agora fosco: Nintendo.
- Ai meu deus! É um video-game.
Olha para um lado. Pro outro também. A chuva para, pancadinha de verão. Abro ou não abro? Resolve e abre. Não é video-game.
- Onde já se viu, é caixa de video-game é vontade de video-game mas não é video-game.
Video-game. Video-game. Tudo que passa na cabeça do menino. Tudo que ele conversa consigo próprio diariamente. Aperta o passo. Um guarda corta a rua. O passo para. E agora, o que eu faço? Abaixa a cabeça e continua.
- Se ele ver o que eu levo?
Ai meu deus, nem pensar. Continua. Embrulho embaixo do braço. Anda muito, anda tudo. Quase tudo. Vontade de urinar.
- Já estou cheg...
Passa por uma mulher e inconscientemente diminui o volume, esquece a vontade e o fim da frase. Meia frase falada, de conversa de louco, se perde no nada. Por aqui tem muitas dessa mulheres. Estranhas. Muito frio e ainda muita saia curta, muita camisa curta. Sem mulher, volta o monológo.
- Sei não. Estranho.
Calcula que já seja umas duas horas da manha. Na verdade foram vinte minutos.
- É aqui.
Um grande pátio, pátio desses de detrás de igreja.
Ninguém em vista. Nem ninguém nem Jota, senão a galinha. O pretinho chega, ela para de ciscar e ouve bem. Quebra o pescoço e observa o pretinho vindo. Não que seja medo, pois não é medo que sente, mas sim aquela incrivel fixação de fuga que só as rés possuem diante de um perigo inofensivo. Anda duas pernadinhas de galinha para longe. O moleque vindo. Instinto de escape. Patas presas. Será que ele muda a rota? Pois assim cisca ainda, senão corre. Moleque para. Galinha, esquecendo a lógica que nunca teve, parte em disparada. Cantando o canto de desespero de galinha vai-se embora. Ele fica sozinho. Mas que vontade de mijar.

Nada de Jota. Por que fui vir? Agora vou ter que esperar ele aparecer, tudo por seis reais, fossem ainda dez.
- Frio.
Um, dois, cinco, dez, meia hora, uma completa. Menino ainda esperando. Vontade de mijar. Não posso sair daqui. Vai que ele aparece? Não me vendo vai se embora e aí eu é que fico esperando que nem idiota alguém que nem vem mais. Xixi. Eu fico. Afinal, onde eu vou mijar agora? Atrás de Igreja é pecado, vou ter que sair daqui. Não. Se ele aparece? Mais dez minutos.
- Ai cacete!
A galinha se assanhando reaparece. Finge que vem, e não vem, finge de novo, para para pensar, titubeia, se aproxima. Cisca daqui, cisca de lá. Que vontade de mijar.

Corre em disparada para os fundos do terreno, chega ao murro, arria as calças e termina o conto.

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Estória de dúzia

Mamãe era parideira, dessas que chocam bem, bem e rápido, de modo que me teve assim como meus outros irmãozinhos. Ao todo, doze. Doze pintinhos. Vou contar nossas vidas.

Meu primeiro irmão. Estava no começo de vida, em formação, mamãe era inexperiente, marinheira de primeira viagem. Não sabia como é que tinha de chocar o Antunes, isso mesmo, o primogênito tinha até nome. Só bem depois de seu destino é que a mãe resolveu que isso tudo de nome dava azar, os próximos eram chamados pela ordem dos números de nascença mesmo. Antunes no frio das noites pegou uma gripe e acabou cozido junto da sopa do bicho grande que entra no nosso mundo de cerca e leva alguns tipo Antunes, dizem até que já levara alguns tipo mamãe.

O segundo, chamado Segundo. Nasceu amarelinho, qual gema de ovo, felizmente não virou uma qual o Antunes. Segundo era um curisco, não dava um segundo e mãe já o perdia de vista. Foi numa dessas, ainda menino, que a raposa, intrometida com os braços para dentro do nosso espaço, catou ele.

Terceiro. Esse nasceu vesgo. Vocês já viram pinto de óculos? Então, nunca que enxergou nada direito. Ou melhor o direito se adentrava para as áreas do esquerdo e tudo que via estava era trocado. Quis virar galo de briga, seu ídolo era Diabo Vermelho, o galão das garras grandes, sem um olho e portanto já aposentado. Diziam as outras galinacéas que o bicho grande não tinha cozido ele também pois o tinha em grande estima, tinham sido parceiros de luta ou coisa assim. O bicho grande era medroso, diziam, quem brigava mesmo era o Diabo, o outro ficava por detras das madeiras, mexendos as asas sem pena e coricócando como se fosse manhã sempre. Na sua última luta era que tinha perdido o olho, ganhou mesmo assim. Virou lenda. Terceiro entrou para escola, bicho grande pois ele com os outros de briga para aprender, acabou morto sem se formar e sem o bicho grande saber que ele era vesgo de criança. Uma pena. Literalmente, foi o que sobrou.

Esse aqui foi uma desgraça. Ninguém que toca no assunto, seu nome é proibido até hoje. O pinto nascido após o Terceiro e antes de Tião, o Quinto passou a se chamar Tião depois da estória dele, a saber, então esse pinto do meio dos dois era da pá-virada. Comia uns milho véio, achando no fundo das nossas cercas, e ficava doidão. Mamãe ficava que não podia. Ter filho viciado. Considerava-o morto e não se dava mais por ele. Um belo dia acordou com as formigas todas na boca. Sinal de que o milho tinha ficado véio demais.

Tião. Tião fora o único depois de Antunes a escapar da sina dos números. Tinha personalidade, ciscava de jeito único, que só ele. Acabou virando astro, celebridade, filmaram ele para um tal de comercial. Levaram ele daqui, ou melhor um bicho grande com nome de Tião na lapela, bicho grande e negro, veio, pos na caixa e foi-se embora.

Sexto. Escritor. Formou-se nas letras aprendeu tudo que é piado difente e língua de homem. Pela fama que alcançou ficou famoso nos muitos galinheiros perto daqui. Foi ele que criou as expressões que nós pintinhos, galinhas e aves em geral usam: galinheiro virou, mundo da cerca, homem, bicho grande, caminhoneiro, Tião. Por ai vai. Para saber mais busque no google, Antologia literária de Sexto Pinto. Afinal somos galinhas e não burros, temos internet e falamos que nem gente. Pelo menos nesse conto.

O sétimo chamou-se Setimo. Isso mesmo, sem ascento. Ligado ao mundo das artes, dizia que o nome era coisa importante e representava seu canal de individualidade artística. Virou o Van Gogh das galinhas, cortou o bico num ascesso de loucura e morreu de fome logo após. Não conseguia ciscar.

Oitavo. Esse é ótimo. Dele nunca viram, mas sabe-se essa anedota. Perdera a perna num acidente de arame, e subistituiram-na por um forfóro. Ciscou, explodiu. Trágedia de um viés cômico impensável.

Nono. Pinto mais sem graça. Nasceu, quebrou a casca, piscou, ciscou, comeu. Amou galinha de angola e se partiu com ela, voltou dia desses com uma filharada horrenda de grande para a visita. Haja milho para todo mundo. Por aqui é que não ficou, partiu com os filhos para o galinheiro, ou mundo de cercas, para lá do bando dos chiqueiros. Se arrasou. Mora hoje num pardieiro que fede a porcos. Tem sua mulher com as pernas cheias de varizes, as penas puidas e o peito chôcho. De uma infelicidade cotidiana.

Décimo. Nasceu sonhador, vai ver por ser número redondo. Tinha ascesso de grandeza. Megalogâmico desde pintinho, achava-se grande, galo de porte. Passou a maior parte de sua juventude a contar mentiras, mitômano. Foi imperador de reinos pós pasto que ninguém sabia onde, foi general de extrema importância nas guerras que só ele mesmo conhecia, mesías de profecias últimas sempre não realizadas. Coitado, mal lembrava ele que nunca tinha saído dos arames que nos cercavam e mais ainda que todos sim. Contador de lorotas, deu-se bem com os papagaios que visitavam-nos. Trocava milho de refeição por estórias novas. Isso tudo no discaramento de inocente que não era.

O último antes de mim. Aprendeu a voar. Mas pinto não voa, né? Mas esse aí sim. nasceu preto, peito forte, bico adunco, comeu alguns filhotes das amigas de mamãe antes de se partir voando. Porque tinha moral suficiente para impedir o fraticídio, e teto de menos para evitar a fuga. Ninguém que nunca teve coragem de confessar para a minha velha que tinha chocado um corvo em vez de filho.

Doze. Prazer, me chamo Doze. Doze é a única coisa que tenho, não por merecimento mas por antecedente, por costume. Doze que fecha a dúzia, de filhos e de contos. Vinte quatro no total, ou melhor, vinte e três, pois eu sou filho mas não conto nada. Sou pinto formado, mas estou no ovo. Durante tempo demais. A vida da minha família me foi contada durante a choca, mamãe não parava de falar, mas senta quente com muito gosto. Acabo que sou o único sem vida, sem conto, sem estória e acabo. Não consegui rachar a casca que me separa do mundo lá de fora. Hoje sou condenado a ser um ovo podre. Um potencial de tudo, para tudo. Podia ter excedido meus irmãos e ter vagado a solo pelo mundo, podia ter sido o manda-chuva do cercadinho, podia ter comido de tudo e parado na ceia de natal, podia ter virado metáfora, estrela no céu, ou desenho de criança. Podia ter sido tudo e mais um pouco mas fiquei aqui dentro, pior do que a galinha que fica para titia já que a mesma ainda tem um destino. Eu, não. Nasci já sepultado, dentro da casca do ovo. Ovo, proteção, pretensamente. Fui sufocado pelo carinho excessivo da bunda quente de minha mãe e não vinguei. Qual que é a estória e a história de um ovo que não vingou? Nenhuma, nem para omelete que serve.

domingo, 21 de fevereiro de 2010

A menina que cheirava tudo e o menino que não via nada.

(Findas as desnecessariedades de autoexplicação, passo agora a minha arte, já que agora eu, O Autor, escrevo tanto desengajadamente e com tamanha leveza quanto aquelas que me fizeram famoso e reconhecido mundialmente no circuito literário. É interessante saber que ninguem nunca perguntou-me o nome, meu nome. Sou famoso mas meu nome quem sabe?, sou reconhecido mas nunca vocativo... Onde já se viu? Bom, vamos ao conto.)

Contraposição. Uma do tudo, outro do nada, esse mesmo, dos não olhos e aquela outra do nariz. Uma via, outro não, aquela mesma uma cheirava e esse outro mesmo não. O do nada, menino, o do tudo, menina. Duas crianças. Vieram não se sabe donde ou como e assim se foram de mesma forma, mas sabe-se que conversavam a beira-mar e foi mais ou menos assim.

- Eca! Que cheiro de eca.
- Como assim? Eca não é cheiro.
- É sim, tem cheiro de eca.
- Eca é grito que mamãe dá quando me vê com o dedo no nariz, bem assim ó...
E enfia o dedo no nariz. Ela grita:
- Eca! Que nojo.
- Isso mesmo, igualzinho ao que ela faz.
Agora sem o dedo atochado, se duvida e pergunta:
- Que cheiro tinha a sua outra eca?
- Tinha cheiro de menino que vai por o dedo no nariz.
- Mas como, se eu nem tinha posto?
- Era igual.

Os dois permaneceram mudos, a conversa esmoleceu. O menino com vergonha do dedo que frequentou onde não devia, ela sentindo a sinfônia de cheiros do mar. Porque mar não era palavra, nem azul, era cheiro. Da mesma forma era o pai, não era ronco nem chapeu com cachimbo, era cheiro. O cachorro, não era festa nem rinite, era cheiro, e quê cheiro. O silêncio das ondas só foi interropido com a deixa:

- Quando é que foi que você passou ver tudo de nada?
- Eu é que não me lembro de nunca ter visto assim como gente que vê. Meu pai me diz assim desde pequeno: "Menino, quando você nasceu Seu Doutô Médico disse que seu Pá era um homem de muita sorte. Ele disse que você enxergava que nem Monet pintava, e que nada podia acontecer para ser doutro modo."...

O homem pai, chucro, não entendendo nada, mas ouvindo o nome Monet, nome de famoso, talvez francês mas com certeza pintor, Monet, que ouvia de quando em quando na tv, ouvia, porque também não via nada direito, achou que o filho tava era predestinado a genialidade. Desde então é que dizia para todos os vizinhos que davam trela que seu filho já via como o gênio Monet e que só faltava era o menino ter idade de grande para poder pintar de tudo que via no couro do quadro.

-... Sabe como é, vejo tudo diferente assim desse jeito como você sente esses cheiros doidos.
- Cheiro não é doido, não. Já até senti cheiro de doido uma vez, meu tio era, sabe? Era cheiro de quarto fechado com pouca luz. Juro por Deus! E os cheiros que sinto não são doidos assim pois se fossem, eles é que cheiravam igual meu tio. E seu ver, como é?
- Dum modo meio torto, nada é nada que é. Tá vendo o horizonte? Então, sabe onde o mar acaba e o céu começa? Bom, eu não vejo, para mim horizonte não existe. Mas para ficar aqui no pertinho, o seu cabelo, é negro, preto do tisnado dos carvoeiros, isso eu vejo bem, mas quando caem nos seus olhos pretos não sei mais que que é cabelo que que é olho.
- Não entendi.
- Arrr, você nunca que entende nada. Fala disso tudo aí de cheiro que eu mais finjo, que entendo, e não faz pensar direito nessas bobeira que eu falo. Vou explicar de outro, para e pensa igual que a gente faz na aula de tabuada. Tá vendo aquela árvore ali, lá para as banda do mângue? Então eu sei que as folhas existem por que eu vejo uma a uma no chão depois, mas agora é tudo um grandão verde, como se fosse tudo de um só.
- Ah, entendi.
- Entendeu, é?
- ...
- 'ntendeu é nada. Vou falar de novo, pela última agora. Ouve direito menina. Eu vejo é igual um lápiz, tudo quanto é letra e frase está tudo ali dentro, prontinha para ser escrita, e como não sabe o que eu vou escrever ele é que tem que ter de tudo ali dentro, prontinho, guardado na espera. Acaba por ficar tudo apertadinho, e é por isso que o grafite é preto, é a cor da confusão de todas aquelas letras e palavras que ficam ali dentro, espremidinhas. Eu só não vejo as coisas porque está tudo uma sobre a outra e a outra sobre a uma, num fuzuê só, quem nem no lápiz. Nada tem começo e fim, borda é que não há, tudo se mistura.
Fascinada com a descrição, a menina, diz:
- Seu mundo é que deve de ser legal. Quando você olha para ele nenhum país é que faz fronteira com nínguem, daí você poder ir a canto todos sem passaporte, é ou não é?
- Acho que sim.

Novo silêncio. Novos cheiros, novas vergonhas.

A menina puxa seu cabelo para o nariz e funga-o.
- Gosto tanto do meu cabelo...
- É, eles são bonitos, igual ao pelos do casco de Jurema.
- Jurema?
- Jurema, meu jabuti.
- AH, você se é tão estranho, me acha um jabuti.
- Você até que se parece com um, quando não conheçe alguém não tira a cabeça do seu casquinho que nada, mas depois vai lá e tasca uma mordida no dedo da gente.
- E você que só sabe de chocar as pessoas. Parece que faz de gosto!

Outro silêncio. Sem cheiros, só vergonhas.

Cabelo de novo no nariz. Vaidade ofendida:
- Ei, cheira meu cabelo, vê se tem aroma?
- Já disse que não vejo direito. Vai adiantar de nada não.
- Sim, mas cheira de qualquer.
O menino pega um tufo e leva ao nariz:
- Tem cheiro de nada, falei que não via!
Vaidade outra vez no chão:
- Pois para mim tem cheiro do que é. De preto. Tem sabor de negrume de mato quieto após chuva.
- Pode até ser, mas para mim tem cheiro de sabão de banho.

Mundo surdo-mudo mais outro tanto.

A menina se endireita, move sua cabeça em direção da do menino, para a poucos centímetros. Lábios quase se encostam. Uma fungada. Um cheiro. Um dito. Ela:
- Seu lábio cheira assim como vontade de doce. Sabe quando a gente para na vitrine da doceria e sente na boca o doce doutro lado, só na vontade de entrar e roubar um...?
Pausa, sem silêncio: corrida de corações pulsantes.
- Sei sim como é o cheiro de lábio, o seu é igual.

E o menino que nada tinha em comum com ela, acabou aprendendo como é que é cheirar de tudo.

Fim

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

O lenço e Jean-Paul Sartre

Ao lado de Simone e outras sumidades ideológicas, Sartre discurçava brandamente e agradava-se numa tarde amena em um caffe parisiense. Até aí nada de mais, nada de diferente. Estava gripado. Ai meus deus! Seria a do porco? Naquela época não existia. Novamente, tudo ainda permanecia no marasmo cotidiano da vida de algum. Calma, é agora que o que conto começa a valer...

... enfia a mão na algibeira do paletó para alcançar um lenço e o que pipoca lá de dentro é uma lagosta. Falei que ia ficar bom, é ou não é? Assustado atravessa a lagosta pelo salão do caffe e procura realmente o que pretendia no bolso. Volta uma nova lagosta, igual a outra. Dessa vez sem susto algum, conforma-se com os acontecimentos e assoa o nariz na lombada rubra do crustáceo e torna-o no bolso. Afinal, fosse um lenço, fosse uma lagosta, fosse um filósofo, fosso um louco, o nariz escorria e precisava ser assoado, simples assim. Passou a noite e e ainda outro dia usando a lagosta como lenço. Não muitos dias após, perdeu a lagosta. Estava afeiçoado a amiguinha que lhe tinha servido à gripe, ficou triste.

Pouco? Não! Qualquer um outro, teria se internado no primeiro manicômio. Sendo sempre os gênios tanto gênios quanto loucos, não foi o caso. Continuou a vida, passou anos no ciclo das lagostas, até que... O bom das estórias é que elas sempre têm trilhares de até's que's e porém's, viradas bruscas imprevísiveis. Voltando. Até que um belo dia se ia por alguma rua, atrasado para uma palestra quando resolve perdir as horas para um grande Senhor Lagosta de dois metros de altura. Ela vira um de seus dez pulsos, observa atentamente o relógio e lhe responde.

- M. Sartre, il est quatre heurs.

Admirado com o francês impecável da lagostona se parte ao compromisso. Chegando lá, quem estava na primeira fileira, quieta, para ouvir o monólogo? Ela mesmo, o senhor Lagosta. Dá-se o discurso, ao fim todos aplaudem, muito mais a lagosta com todas aquelas mãos. Depois separam-se ambos. Era de se admitir que as lagostas estavam ficando mais frequentes em sua vida, antes eram pequenas, objetos imoveis, não correspondiam, hoje elas são enormes e quem sabe pode-se ainda acabar marcando almoço com uma delas, trocadilhos a parte. Resolveu dar um basta nisso, quis voltar ao real. Se seus olhos lhe engavam, o mesmo não faria o paladar.

Cozinhou uma das lagostas imáginarias que apareciam na casa e teve a certeza de que quando a provasse, imediatamente se transformaria no lenço perdido, no despertador, na escova de dentes ou em qualquer. Preparou a maionese e com cuidado descamou a carne do rabo do bicho inerte, provou-lhe. Surpresa, maior ainda do que se visse a lagosta se metamorfoseando em despertador. Ela possuia uma paladar aprumado e nobre, as carnes tenras e róseas, uma maravilha. Sem saber o que mais fazer, mandou trazer umas dessas lagostas reais que vivem no mar e não falam com gente. Acareou o sabor entre as duas.

Agora valendo uma bala para quem saber qual delas era a melhor? Faça sua escolha.

Com larga vantagem a lagosta imáginaria derrotou a pobre ermitã de vida marinha. Se ganhou eis aqui sua bala sabor lagosta, se não eis aqui sua bala sabor lagosta. Mas era óbvio que a imáginaria seria a melhor, perdão se o senhor leitor perdeu a aposta, acabei te dando a bala imaginária por comiseração. Afinal o fabuloso vem sempre acompanhados de requintes de grandiloquência, preparados intimamente para caber com perfeição nos sonhos da miséria humana. Pense comigo, se Sartre, grande nome do século XX, recusador de Nobeis, tido como o maior filósofo dos tempos, pesquisador da existência, sabedor das ontologias, metafísico, ciente das realidades últimas e primeiras das coisas, se esse mesmo homem, sendo o que foi, não conseguiu se furtar das ilusões lisongeiras, apazigadores das vontades, imagine o que nós, caros mortais, não estamos sujeitos?

As lagostas são então o símbolo do contrato humano com a mentira, com o fabular. Todos nós temos nossos valores assentados no nada, nossos conhecimentos imprecisos. Tudo o que achamos é fruto da nossa imaginação, no casamento com a realidade, somos todos adúlteros. E toda essa conjução de irrealidades prodigiosas é o que chamos burlescamente de vida real. Digo mais, e não é a toa que o francês vesgo achou a lagosta falsa a mais apetitosa. Não é a toa que criamos e cultivamos nossas lagostas, elas trazem sentido, nos apaixona pelo marido musculoso que é um asno, nos dá coragem para morrer pelos nossos ideais ignobilmente patrióticos e acreditar em sem-sentidos como o deus católico e tudo o mais.

Irrealidades fréneticas, mexo com vocês. Irrealidades frémeticas, zuno com vocês. Irrealidades irreais, vivo o real com vocês.

E é por isso que quando acordo dou bom dias as minhas lagostas.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

Eu, o Autor.

Caríssimos,
Bem que se perceba. Laos Tag... Lag os Ta... Lagosta. Agora, percebo a confusão de um 'g' mal colocado. Ou melhor mau colocado, pois de próposito, para confundir. Sr. Laos tag nada mais é do que uma das milhares de lagostas dentro de minha cabeça, isso mesmo, lagostas. Tenho-as aos montes.

Diz-se meu adido e ainda por cima trabalha como escrivão na embaixada de Laos. Ha! Tudo mentira, tudo irrealidade, tudo criado na maior meticulosidade de sagaz. Agora não me culpem, não pude e posso fazer, afinal ele é ele e eu sou eu (mais uma do Húngaro Plachta). Ele veio, eu depois, ele escreveu, eu também, ele mente, e quem sabe se eu?

Adento aos dicinários:(Nem Rousseu na sua criatividade de enciclopedista fez ao veránaculo 'eucaristia' o que faço agora com 'lagosta'. Estória boa, depois conto para exercitar a arte.)

Lagosta:
Substântivo concreto - Crustáceo, decápode da família Palinuridae que vai muito bem com limão.

ou

Substântivo inconcreto - Valores imáginarios, as irrealidades prodigiosas. Logo pode-se dizer que lagosta é um substântivo lagosta, fantasioso. Tão ridiculamente irreal como um fantasma vestindo fantasia.

Segue acima o caso explicando.

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

Eu, Sr. Laos Tag

Venho por meio deste... desculpem-me a formalidade, o ofício de escrivão de embaixada corrói-me a personalidade. Continuando, é por meio deste que me apresento a vois ilustres leitores dele, o Autor. Sei que o que esperam é encontrar os seus magnânimes escritos no entanto devo confessar que por ele vocês hão de esperar mais um tanto. Nada de mais, venho me apresentar e só. Acho que as devidas introduções se fazem necessárias já que tive de escrever no espaço reservado a ele, intromissão já desculpada vocês hão de ver.

Trabalho na repartição da embaixada da grandíssima e notabilíssima República Democrática Popular do Laos, embora a importância descomunal que meu país ocupa nos meios da ordem e política internacional, afinal fomos nós que protagonizamos o durável embargo das bananas de Myamar e ajudamos no fornecimento de papel para o Vietnam sem o qual não seria possível promulgar a nova constituição, sou tão somente escriba. Sou copista, tanto como de profissão como por passatempo por que copista, caros ignaros senhores, é também palavra que significa pessoa que "bebe muitos copos, beberão".

Acontece que durante os intermináveis tragos no bar do Seu Jõao, onde reunimo-nos, eu e meus colegas, me inflamo completamente pela nacionalidade que não possuo e acabo por glosar todas a belezas do sempre grande Laos. Essa volta toda para explicar, por que há entre o meu título de deferência e meu primeiro nome o não comum nome de Laos. Acredito que fui bem claro, afinal o caro leitor só precisa de um pouco de imaginação para supor que durante um dos muitos ascessos patrióticos, um dado amigo tenha proferido:

- Caro Sr. do Laos, acalme-se. Afinal de belezas e glorias já, nós brasileiros, temos muitas.

Obviamente não foi difícil para os amigos bêbados, ou seriam bêbados amigos?, presentes sublimarem o "do" e ter lhes sobrado Sr. Laos. Virei a partir de então Sr. Laos Tag, Tag por nascença e Lao por repetição. Não sei se essa introdução me auxilia no meu propósito, admito-me bebum e não ocupo grande cargo, porém a explicação de meu nome já me é sufuciente tanto para o vosso conhecimento quanto para evitar as vossas possíveis piadas.

Muito gasto de papel a toa, poderia muito bem ter lhes poupado essa peculiaridade de minha vida, apresentando-me: Prazer, chamo-me Sr. Laos Tag. O que já foi, já foi, como dizia o grande filósofo hungaro Brünno Plachta. Com devidas introduções já findas revelo o propósito do escrito,(mas não sem antes alguma enrolação. Pronto, enrolo em quatro períodos e aumento a ansiedade do leitor pela descoberta)

O Autor passa não tão bem como de costume e mandou-me anuciá-lo para breve, dando-me o encargo de revelar que ele mesmo não revela os segredos por de trás do título e imagem a cima. Repito, muito papel para nada, no entanto faço as traças felizes e quem sabe roliças, pois encontrarão aqui o melhor tipo de texto a se roer, a saber, o vão, como assim elas me confessaram.

Da parte do título e do tema geral do blog

Do ato de explicação de seus motivos, o autor se redime por meio deste. Disse-mo que talvez explique, sem data a fixar nem compromissos. Deixa para os seus futuros cinco leitores esta curiosidade.

Ass: Sr. Laos Tag