quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Por que sempre queremos que algo aconteça?

- Ei, você. Vem cá.
- Quem? Eu?
- Vem cá moleque.
Pernas finas de ráquitico na agilididade de vassoura piaçava correndo o chão.
- Está vendo isso aqui? Então, leva esse pacote para mim lá na rua do Boqueirão, detrás da Igreja. Você conhece o Jota, né? Vai lá e leva isso para ele. Mas tem que ser já.
- Ué, o Jota não viaja?
- Escuta o que estou lhe dizendo, essa história de viagem é tudo areia nos olhos dos outros. Enganação. Ele está mesmo é esperando que alguem leve isso para ele.
- Que vá você então...
- Eu não posso, dou muito na vista. Para entregar isso daí tem que ser andando, não pode pegar o onibus não!
Falou ainda para sair fora da rota dos guardas e não espiar nunca, em qualquer hipotese o dentro do embrulho. Saca duas de dois e entrega na mão do pretinho.
- Corre. Vai que quando chegar lá é so esperar o Jota aparecer.
- Mas é longe!
- Chispa.
- Está frio.
Mais uma de dois na mão. Foi-se.
Caminho longo. O pequeno olha o rélogio dentro do bar. Meia noite. Passa a conversar com o nada. Mania de sempre. Mania de sempre mas muito bem escondida. Não gosta de levar troça dos outros.
- Cacete, já é tarde ainda vou levar umas duas horas para fazer o percurso.
Frio.
- Que tal se eu não parasse para um chocolate quente. Tenho grana. Mas não posso, o moço falou que era urgente. Falou?
E vai seguindo no passo cumprido de perna pequena. Passa os bares, vê os bêbados de costume da região. Decide-se pelo chocolate. Enfia a mão no bolso. Alguém pode ver. Entra no bar, dinheiro na mão, pergunta:
- Moço, tem chocolate quente?
- Menino, isso é bar, vai lá ter chocolate quente.
Mas a mulher do dono aparece e com ela logo depois o chocolate. Ela nem que cobra. E o menino volta a marcha.
- Mamãe falou no video-game. Video-game. Falou que no final do ano eu tinha um... Juninho tem, por que também não posso? Do natal não passa.
Falando o passo esmorece. Lembra do pacote em baixo do braço. Que terá dentro dele? Sente uma gota. Outra. E outra. E ainda mais outra. A chuva cai. Ele sem saber para onde ir continua o trajeto. A chuva aperta. Ele entra de baixo de uma marquise. Olha o pacote e vê pelo papel molhado, fino, agora fosco: Nintendo.
- Ai meu deus! É um video-game.
Olha para um lado. Pro outro também. A chuva para, pancadinha de verão. Abro ou não abro? Resolve e abre. Não é video-game.
- Onde já se viu, é caixa de video-game é vontade de video-game mas não é video-game.
Video-game. Video-game. Tudo que passa na cabeça do menino. Tudo que ele conversa consigo próprio diariamente. Aperta o passo. Um guarda corta a rua. O passo para. E agora, o que eu faço? Abaixa a cabeça e continua.
- Se ele ver o que eu levo?
Ai meu deus, nem pensar. Continua. Embrulho embaixo do braço. Anda muito, anda tudo. Quase tudo. Vontade de urinar.
- Já estou cheg...
Passa por uma mulher e inconscientemente diminui o volume, esquece a vontade e o fim da frase. Meia frase falada, de conversa de louco, se perde no nada. Por aqui tem muitas dessa mulheres. Estranhas. Muito frio e ainda muita saia curta, muita camisa curta. Sem mulher, volta o monológo.
- Sei não. Estranho.
Calcula que já seja umas duas horas da manha. Na verdade foram vinte minutos.
- É aqui.
Um grande pátio, pátio desses de detrás de igreja.
Ninguém em vista. Nem ninguém nem Jota, senão a galinha. O pretinho chega, ela para de ciscar e ouve bem. Quebra o pescoço e observa o pretinho vindo. Não que seja medo, pois não é medo que sente, mas sim aquela incrivel fixação de fuga que só as rés possuem diante de um perigo inofensivo. Anda duas pernadinhas de galinha para longe. O moleque vindo. Instinto de escape. Patas presas. Será que ele muda a rota? Pois assim cisca ainda, senão corre. Moleque para. Galinha, esquecendo a lógica que nunca teve, parte em disparada. Cantando o canto de desespero de galinha vai-se embora. Ele fica sozinho. Mas que vontade de mijar.

Nada de Jota. Por que fui vir? Agora vou ter que esperar ele aparecer, tudo por seis reais, fossem ainda dez.
- Frio.
Um, dois, cinco, dez, meia hora, uma completa. Menino ainda esperando. Vontade de mijar. Não posso sair daqui. Vai que ele aparece? Não me vendo vai se embora e aí eu é que fico esperando que nem idiota alguém que nem vem mais. Xixi. Eu fico. Afinal, onde eu vou mijar agora? Atrás de Igreja é pecado, vou ter que sair daqui. Não. Se ele aparece? Mais dez minutos.
- Ai cacete!
A galinha se assanhando reaparece. Finge que vem, e não vem, finge de novo, para para pensar, titubeia, se aproxima. Cisca daqui, cisca de lá. Que vontade de mijar.

Corre em disparada para os fundos do terreno, chega ao murro, arria as calças e termina o conto.

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