terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Estória de dúzia

Mamãe era parideira, dessas que chocam bem, bem e rápido, de modo que me teve assim como meus outros irmãozinhos. Ao todo, doze. Doze pintinhos. Vou contar nossas vidas.

Meu primeiro irmão. Estava no começo de vida, em formação, mamãe era inexperiente, marinheira de primeira viagem. Não sabia como é que tinha de chocar o Antunes, isso mesmo, o primogênito tinha até nome. Só bem depois de seu destino é que a mãe resolveu que isso tudo de nome dava azar, os próximos eram chamados pela ordem dos números de nascença mesmo. Antunes no frio das noites pegou uma gripe e acabou cozido junto da sopa do bicho grande que entra no nosso mundo de cerca e leva alguns tipo Antunes, dizem até que já levara alguns tipo mamãe.

O segundo, chamado Segundo. Nasceu amarelinho, qual gema de ovo, felizmente não virou uma qual o Antunes. Segundo era um curisco, não dava um segundo e mãe já o perdia de vista. Foi numa dessas, ainda menino, que a raposa, intrometida com os braços para dentro do nosso espaço, catou ele.

Terceiro. Esse nasceu vesgo. Vocês já viram pinto de óculos? Então, nunca que enxergou nada direito. Ou melhor o direito se adentrava para as áreas do esquerdo e tudo que via estava era trocado. Quis virar galo de briga, seu ídolo era Diabo Vermelho, o galão das garras grandes, sem um olho e portanto já aposentado. Diziam as outras galinacéas que o bicho grande não tinha cozido ele também pois o tinha em grande estima, tinham sido parceiros de luta ou coisa assim. O bicho grande era medroso, diziam, quem brigava mesmo era o Diabo, o outro ficava por detras das madeiras, mexendos as asas sem pena e coricócando como se fosse manhã sempre. Na sua última luta era que tinha perdido o olho, ganhou mesmo assim. Virou lenda. Terceiro entrou para escola, bicho grande pois ele com os outros de briga para aprender, acabou morto sem se formar e sem o bicho grande saber que ele era vesgo de criança. Uma pena. Literalmente, foi o que sobrou.

Esse aqui foi uma desgraça. Ninguém que toca no assunto, seu nome é proibido até hoje. O pinto nascido após o Terceiro e antes de Tião, o Quinto passou a se chamar Tião depois da estória dele, a saber, então esse pinto do meio dos dois era da pá-virada. Comia uns milho véio, achando no fundo das nossas cercas, e ficava doidão. Mamãe ficava que não podia. Ter filho viciado. Considerava-o morto e não se dava mais por ele. Um belo dia acordou com as formigas todas na boca. Sinal de que o milho tinha ficado véio demais.

Tião. Tião fora o único depois de Antunes a escapar da sina dos números. Tinha personalidade, ciscava de jeito único, que só ele. Acabou virando astro, celebridade, filmaram ele para um tal de comercial. Levaram ele daqui, ou melhor um bicho grande com nome de Tião na lapela, bicho grande e negro, veio, pos na caixa e foi-se embora.

Sexto. Escritor. Formou-se nas letras aprendeu tudo que é piado difente e língua de homem. Pela fama que alcançou ficou famoso nos muitos galinheiros perto daqui. Foi ele que criou as expressões que nós pintinhos, galinhas e aves em geral usam: galinheiro virou, mundo da cerca, homem, bicho grande, caminhoneiro, Tião. Por ai vai. Para saber mais busque no google, Antologia literária de Sexto Pinto. Afinal somos galinhas e não burros, temos internet e falamos que nem gente. Pelo menos nesse conto.

O sétimo chamou-se Setimo. Isso mesmo, sem ascento. Ligado ao mundo das artes, dizia que o nome era coisa importante e representava seu canal de individualidade artística. Virou o Van Gogh das galinhas, cortou o bico num ascesso de loucura e morreu de fome logo após. Não conseguia ciscar.

Oitavo. Esse é ótimo. Dele nunca viram, mas sabe-se essa anedota. Perdera a perna num acidente de arame, e subistituiram-na por um forfóro. Ciscou, explodiu. Trágedia de um viés cômico impensável.

Nono. Pinto mais sem graça. Nasceu, quebrou a casca, piscou, ciscou, comeu. Amou galinha de angola e se partiu com ela, voltou dia desses com uma filharada horrenda de grande para a visita. Haja milho para todo mundo. Por aqui é que não ficou, partiu com os filhos para o galinheiro, ou mundo de cercas, para lá do bando dos chiqueiros. Se arrasou. Mora hoje num pardieiro que fede a porcos. Tem sua mulher com as pernas cheias de varizes, as penas puidas e o peito chôcho. De uma infelicidade cotidiana.

Décimo. Nasceu sonhador, vai ver por ser número redondo. Tinha ascesso de grandeza. Megalogâmico desde pintinho, achava-se grande, galo de porte. Passou a maior parte de sua juventude a contar mentiras, mitômano. Foi imperador de reinos pós pasto que ninguém sabia onde, foi general de extrema importância nas guerras que só ele mesmo conhecia, mesías de profecias últimas sempre não realizadas. Coitado, mal lembrava ele que nunca tinha saído dos arames que nos cercavam e mais ainda que todos sim. Contador de lorotas, deu-se bem com os papagaios que visitavam-nos. Trocava milho de refeição por estórias novas. Isso tudo no discaramento de inocente que não era.

O último antes de mim. Aprendeu a voar. Mas pinto não voa, né? Mas esse aí sim. nasceu preto, peito forte, bico adunco, comeu alguns filhotes das amigas de mamãe antes de se partir voando. Porque tinha moral suficiente para impedir o fraticídio, e teto de menos para evitar a fuga. Ninguém que nunca teve coragem de confessar para a minha velha que tinha chocado um corvo em vez de filho.

Doze. Prazer, me chamo Doze. Doze é a única coisa que tenho, não por merecimento mas por antecedente, por costume. Doze que fecha a dúzia, de filhos e de contos. Vinte quatro no total, ou melhor, vinte e três, pois eu sou filho mas não conto nada. Sou pinto formado, mas estou no ovo. Durante tempo demais. A vida da minha família me foi contada durante a choca, mamãe não parava de falar, mas senta quente com muito gosto. Acabo que sou o único sem vida, sem conto, sem estória e acabo. Não consegui rachar a casca que me separa do mundo lá de fora. Hoje sou condenado a ser um ovo podre. Um potencial de tudo, para tudo. Podia ter excedido meus irmãos e ter vagado a solo pelo mundo, podia ter sido o manda-chuva do cercadinho, podia ter comido de tudo e parado na ceia de natal, podia ter virado metáfora, estrela no céu, ou desenho de criança. Podia ter sido tudo e mais um pouco mas fiquei aqui dentro, pior do que a galinha que fica para titia já que a mesma ainda tem um destino. Eu, não. Nasci já sepultado, dentro da casca do ovo. Ovo, proteção, pretensamente. Fui sufocado pelo carinho excessivo da bunda quente de minha mãe e não vinguei. Qual que é a estória e a história de um ovo que não vingou? Nenhuma, nem para omelete que serve.

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