sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

O lenço e Jean-Paul Sartre

Ao lado de Simone e outras sumidades ideológicas, Sartre discurçava brandamente e agradava-se numa tarde amena em um caffe parisiense. Até aí nada de mais, nada de diferente. Estava gripado. Ai meus deus! Seria a do porco? Naquela época não existia. Novamente, tudo ainda permanecia no marasmo cotidiano da vida de algum. Calma, é agora que o que conto começa a valer...

... enfia a mão na algibeira do paletó para alcançar um lenço e o que pipoca lá de dentro é uma lagosta. Falei que ia ficar bom, é ou não é? Assustado atravessa a lagosta pelo salão do caffe e procura realmente o que pretendia no bolso. Volta uma nova lagosta, igual a outra. Dessa vez sem susto algum, conforma-se com os acontecimentos e assoa o nariz na lombada rubra do crustáceo e torna-o no bolso. Afinal, fosse um lenço, fosse uma lagosta, fosse um filósofo, fosso um louco, o nariz escorria e precisava ser assoado, simples assim. Passou a noite e e ainda outro dia usando a lagosta como lenço. Não muitos dias após, perdeu a lagosta. Estava afeiçoado a amiguinha que lhe tinha servido à gripe, ficou triste.

Pouco? Não! Qualquer um outro, teria se internado no primeiro manicômio. Sendo sempre os gênios tanto gênios quanto loucos, não foi o caso. Continuou a vida, passou anos no ciclo das lagostas, até que... O bom das estórias é que elas sempre têm trilhares de até's que's e porém's, viradas bruscas imprevísiveis. Voltando. Até que um belo dia se ia por alguma rua, atrasado para uma palestra quando resolve perdir as horas para um grande Senhor Lagosta de dois metros de altura. Ela vira um de seus dez pulsos, observa atentamente o relógio e lhe responde.

- M. Sartre, il est quatre heurs.

Admirado com o francês impecável da lagostona se parte ao compromisso. Chegando lá, quem estava na primeira fileira, quieta, para ouvir o monólogo? Ela mesmo, o senhor Lagosta. Dá-se o discurso, ao fim todos aplaudem, muito mais a lagosta com todas aquelas mãos. Depois separam-se ambos. Era de se admitir que as lagostas estavam ficando mais frequentes em sua vida, antes eram pequenas, objetos imoveis, não correspondiam, hoje elas são enormes e quem sabe pode-se ainda acabar marcando almoço com uma delas, trocadilhos a parte. Resolveu dar um basta nisso, quis voltar ao real. Se seus olhos lhe engavam, o mesmo não faria o paladar.

Cozinhou uma das lagostas imáginarias que apareciam na casa e teve a certeza de que quando a provasse, imediatamente se transformaria no lenço perdido, no despertador, na escova de dentes ou em qualquer. Preparou a maionese e com cuidado descamou a carne do rabo do bicho inerte, provou-lhe. Surpresa, maior ainda do que se visse a lagosta se metamorfoseando em despertador. Ela possuia uma paladar aprumado e nobre, as carnes tenras e róseas, uma maravilha. Sem saber o que mais fazer, mandou trazer umas dessas lagostas reais que vivem no mar e não falam com gente. Acareou o sabor entre as duas.

Agora valendo uma bala para quem saber qual delas era a melhor? Faça sua escolha.

Com larga vantagem a lagosta imáginaria derrotou a pobre ermitã de vida marinha. Se ganhou eis aqui sua bala sabor lagosta, se não eis aqui sua bala sabor lagosta. Mas era óbvio que a imáginaria seria a melhor, perdão se o senhor leitor perdeu a aposta, acabei te dando a bala imaginária por comiseração. Afinal o fabuloso vem sempre acompanhados de requintes de grandiloquência, preparados intimamente para caber com perfeição nos sonhos da miséria humana. Pense comigo, se Sartre, grande nome do século XX, recusador de Nobeis, tido como o maior filósofo dos tempos, pesquisador da existência, sabedor das ontologias, metafísico, ciente das realidades últimas e primeiras das coisas, se esse mesmo homem, sendo o que foi, não conseguiu se furtar das ilusões lisongeiras, apazigadores das vontades, imagine o que nós, caros mortais, não estamos sujeitos?

As lagostas são então o símbolo do contrato humano com a mentira, com o fabular. Todos nós temos nossos valores assentados no nada, nossos conhecimentos imprecisos. Tudo o que achamos é fruto da nossa imaginação, no casamento com a realidade, somos todos adúlteros. E toda essa conjução de irrealidades prodigiosas é o que chamos burlescamente de vida real. Digo mais, e não é a toa que o francês vesgo achou a lagosta falsa a mais apetitosa. Não é a toa que criamos e cultivamos nossas lagostas, elas trazem sentido, nos apaixona pelo marido musculoso que é um asno, nos dá coragem para morrer pelos nossos ideais ignobilmente patrióticos e acreditar em sem-sentidos como o deus católico e tudo o mais.

Irrealidades fréneticas, mexo com vocês. Irrealidades frémeticas, zuno com vocês. Irrealidades irreais, vivo o real com vocês.

E é por isso que quando acordo dou bom dias as minhas lagostas.

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